Crônica do sexto andar

novembro 30, 2010

Eu tento escrever algo e pouco me vem a cabeça. Quero achar que é culpa do barulho, apesar de eu estar numa biblioteca.
Da janela do sexto andar, vejo mais nuvens do que terra. Mais pássaros do que gente. É outono na Alemanha e as árvores realmente perdem suas folhas. Eu nunca acreditava que todas as folhas caíssem. Mas não. Árvores alemãs vão se desnudando aos poucos, assim que o frio começa a dar os primeiros sinais e o sol insiste em cultivar o ócio por essas bandas.  „Só a essência fica”,  diz o meu lado filosófico.
É fim de novembro. A luz já se tornou um bem raro e a conta de energia um bem caro. Da janela do sexto andar ba biblioteca, vejo muitos galhos nus. Algumas poucas folhas amarelas e vermelho-douradas insistem em não cair. Com minha mania de fazer piada sem graça, eu penso que essas devem ser as folhas migrantes brasileiras, que não desistem nunca!
É uma paisagem bonita, não posso negar. Tem um quê de melancólico e romântico em tudo isso. E as poucas aves corajosas, que não migraram pro calor do sul, aproveitam o ganho de mais espaço nos céus e treinam vôos em conjunto. Com essa paisagem eu até me esqueço das chuvas constantes, das tempestades, da escuridão precoce de todas as tardes.  Tanto bucolismo me faz pensar que o outono até poderia  se tornar minha estação preferida se não fossem as vassouras eletrônicas . Eu as chamo de vassouras, mas outro nome adequado seria motosserra sem serra. Esses aparelhinhos medonhos são usados para expulsar das ruas as folhas sem teto. Quanto mais árvores numa cidade, mais a beleza inicial do outono e maior a invasão das maquininhas infernais fazendo montinhos de folhas caídas no final da estação. Eu me pergunto por que não usar vassouras normais? Seria mais ecológico, haveria mais empregos para o mesmo tanto de folhas e eu poderia, finalmente, escrever no sexto andar. Mas não. Quem se importa com a situação global ou com os objetivos egoístas de uma reles pretendente a escritora que – como as aves atrevidas –  não voltou para sua terra quentinha com a primeira ameaça de inverno?
Tá bem. Eu desisto de ser vítima das circunstâncias e vou até o terceiro andar. Ponho um euro num aparelho de balas, giro e pego meus tampões de ouvido. Sim, descobri esses dias que aquelas bolinhas nao eram bonbons, mas tampões de todas as cores . „Que coisa nerd!“, penso eu. Mas era minha única arma frente às moto-vassouras.
Pronto. Agora nada travaria minha criatividade. Sento-me novamente à janela do sexto andar, da biblioteca da universidade. Em frente, árvores de outono despelando-se ao vento, maquininhas varrendo as ruas com vigor, pontos dourados. Que romântico tudo isso.
Com tampões no ouvido, no silêncio da paisagem, eu penso em continuar uma história. Só que, de repente, um pássaro vem em minha direção. Eu me sinto conectada a ele: “Nós ficamos, passarinho. Vamos sobreviver a mais um inverno”.
Ele também parecia querer me cumprimentar por minha atitude de sertaneja forte. Mas „pfuttt“: bateu no vidro maldito da janela do sexto andar. Eu presenciei o último vôo de um pássaro. E só pude escutar minha taquicardia repentina.
Palavras fugiram de mim. Quem sabe… para o sul.

4 Respostas to “Crônica do sexto andar”

  1. Cris Q said

    Omo Ale,
    Eu não consigo imaginar essas máquinas. Elas funcionam com o vento? E aquece esses pés no inverno, vc não vai querer pegar uma faringite…

  2. Layla said

    Eu já tava começando a imaginar um chorinho no fundo e as palavras fluindo das mãos deutsche-sertanejas. Agora só consigo pensar no passarinho grudado na janela!

  3. pataqui said

    Nossa, Layla, grudado é mais dramático ainda! hheheh

    Isso mesmo, Cris. Na realidade é um soprador eletrônico.
    E por falar em faringite…como tah a sua?

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